A fuga foi da seca do sertão, mas o amor percorreu estados até em pau-de-arara para chegar ao MS (In memoriam)

Por Fausto Brites

 

 

 

“Eu não vou na sua casa/Prá você não ir na minha/Você tem a boca grande/Vai comer minha farinha”

 

 

‘‘Marmelo é fruta gostosa/Que dá na ponta da vara/Mulher que chora por homem/Não tem vergonha na cara’’

 

 

A primeira trova ecoava na roça de feijão, por um grupo de famílias nordestinas. A segunda, de outro que se encontrava na mesma lida. A lembrança é da dona de casa Dalva dos Santos Morais, 71 anos, natural de Simão Dias, município situado no chamado Polígono das Secas do Estado de Sergipe. Sentada na varanda de sua casa, na Vila Célia em Campo Grande, olhando para um amplo quintal com bananeiras, mangueiras e flores dos diversos tipos, ela se recorda daqueles tempos de dificuldades dos retirantes nordestinos.

 

 

O local da cantoria: Camapuã, onde aos 18 anos ela chegou com os pai, a madrasta e os quatro irmãos. A seca no Nordeste era cruel e expulsava as famílias de suas terras. ‘‘A tal da seca, que durava tempos, trazia com ela a miséria na garupa’’, diz com os olhos distantes como se recordasse do seus tempos de garota, com pouca diversão, e muito trabalho na roça que a família, às duras penas, ‘‘tocava’’ mesmo enfrentando a falta d’água. ‘‘Dava-se um jeito’’, afirma.

 

 

E com esse jeito que a família conseguia o milho, o feijão, o algodão e criava ovelha e cabritos. Parte da produção era para ‘‘o nosso sustento’’ e, a outra, para ser comercializada na tradicional feira de Simão Dias. Era época do escambo onde uma galinha, por exemplo, era trocada por feijão em quantia acordada entre as partes.

 

 

Ela conta que, certo dia, seu pai chegou em casa e disse que venderia ‘‘o nosso pedaço de terra’’ para buscar o ‘‘progresso’’ em outro Estado. Dalva pensou que, portanto, não iria ouvir mais os aterrorizantes urros das onças que muitas vezes rondava pela casa de pau a pique em que moravam. ‘‘Não gosto nem de lembrar daquilo’’, afirma.

 

 

O pai, que costumava viajar para Feira de Santana, na Bahia, era comerciante de verduras. Em um caminhão alugado, levava os produtos para lá, mas ‘‘não ganhava muita coisa, não’’, diz. Incentivado por um amigo pernambucano, tomou a decisão. ‘‘ Ele, então, vendeu as terrinhas de qualquer jeito (a preço baixo)”.

 

 

PAU-DE-ARARA

 

 

Dalva e família embarcaram num caminhão pau-de-arara levando malas com algumas peças de roupa, os documentos e um pouco de dinheiro do que sobrou depois de pagas as contas. Viajaram até Feira de Santana onde outro casal estava aguardando. ‘‘Pegamos um ônibus para São Paulo e, de lá, fomos para o Rio de Janeiro. Pegamos outro ônibus e viemos para o Mato Grosso (o estado não era dividido)”.

 

Quando chegaram em Campo Grande, Dalva, a família e o casal, estavam sendo aguardados para serem levados ao município de Camapuã. Viajaram em um caminhão até a cidade e, de lá, foram levados para uma fazenda para trabalhar na roça de arroz, feijão e milho.

 

 

Quando chegaram na propriedade, foram recebidos por um rapaz ‘‘muito gentil’’ – segundo Dalva – que veio a cavalo para ajudar as famílias a carregar as malas. O simpático cavalheiro era Elpídio Feliciano dos Santos, pernambucano de Panelas. Foi amor a primeira vista do jovem prestativo e que resultou em casamento no dia 17 de setembro de 1958.

 

 

O interessante é que Elpídio já conhecia o pai de Dalva, embora não sabia da existência da filha. Ele e o futuro sogro se conheceram em Feira de Santana. O amigo que convenceu o pai de Dalva era Cícero companheiro de Elpídio. Os dois vieram antes para Mato Grosso e todos estavam reunidos em uma terra distante e o solteiro Elpídio, apaixonou-se imediatamente. Do primeiro olhar até o pedido da mão em casamento foram apenas 15 dias.

 

 

O cupido foi o amigo Cícero. No casamento não teve festa. ‘‘Nem um cafezinho’’, diz Dalva. Presentes? “Ganhei meia dúzia de xícara e duas travessas”. Depois do casamento – com direito a véu e grinalda – ela e o esposo foram para uma casa de sapê que ele tinha construído. ‘‘Saí por aquele arremedo de rua arrastando o vestido de noiva pela terra’’.

 

 

A lua de mel foi seguida de trabalho. ‘‘Nós chegamos na época de derrubar mato para fazer as lavouras. Colocamos a enxada nas costas e fomos prá roça no dia seguinte ao casamento”, disse ela. Quando o primeiro filho tinha seis anos, Elpídio e Dalva decidiram iniciar uma nova jornada de ‘‘melhoria de vida’’. Foram para a região de Porto Vilma, em Dourados, onde tinham comprado ‘‘pedaço de terra’ para lavoura, mas acabaram frustrando-se pois ‘‘era um areião só’’. Venderam tudo. ‘‘Recebemos até uma bicicleta como parte do pagamento’’.

 

 

De Porto Vilma estabeleceram-se em Vilas Vargas, também na região da Grande Dourados, e foram morar em uma casa de farinha, ‘‘tocando’’ roça em Panambi. A vida não era fácil até que um cunhado de Dalva os convidou para morar em Campo Grande: venderam a casa de tábua de duas peças e foram morar na Vila Célia. “A gente está aqui até agora’’.

 

 

Hoje, Dalva passa o tempo em pequenos afazeres de casa e sempre tem um café pronto. Elpídio faleceu no dia 18 de setembro, vítima de um atropelamento,aos 82 anos. Ela diz que ele era ‘‘um marido muitcho bom’’ e ‘‘um pai melhor ainda’’ de Eliel, Elenildo, Eliuda, Eli e Enilda. E quanto questionada sobre o por quê dos filhos terem o nome começado com a letra ‘‘E’’ a resposta é uma pergunta: ‘‘Elpídio começa com que letra, oxente!?’”. Realmente amor incodicional.

 

 

 

(Reportagem publicada originalmente no jornal Correio do Estado)

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